A internet que você conhecia já morreu. E você ainda não se ligou.

Por Esdras Júnior (@eje.producer)
Em um passado não muito distante, a internet parecia um espaço vivo: caótica, criativa, pulsante de vozes humanas. Fóruns efervescentes, blogs pessoais, memes toscos feitos à mão e opiniões conflitantes conviviam num ecossistema barulhento, mas autêntico. Havia erros, improviso, paixão — sinais inequívocos de presença humana.
Hoje, no entanto, uma estranha sensação de vazio paira sobre a rede. Interações soam mecânicas. Conteúdos parecem se repetir em infinitos espelhos distorcidos. E cada vez mais, a impressão é de que falamos com fantasmas programados para nos entreter, manipular e vender.
A chamada "Teoria da Internet Morta", antes ridicularizada como mais uma teoria da conspiração sem fundamento, ganha agora contornos sinistros. É possível que a internet, tal como conhecíamos, já esteja morta? E que, em seu lugar, restem apenas resquícios controlados por algoritmos e inteligências artificiais?
Os Primeiros Sinais: Quando a Vida Começou a Desaparecer
O conceito de uma "internet morta" começou a surgir em fóruns como 4chan e Reddit por volta de 2016-2017. Usuários relataram uma estranha homogeneização dos conteúdos e a sensação de que as interações estavam se tornando... programadas. Perceberam comentários genéricos, respostas automáticas, perfis que pareciam existir apenas para propagar opiniões específicas.
Relatórios de instituições como a Imperva, uma empresa de segurança digital, apontaram que já em 2016 mais da metade do tráfego da internet vinha de bots — não de seres humanos. Bots de indexação, de automação comercial, de manipulação de opinião.
A suspeita se intensificou após escândalos como o de Cambridge Analytica, que revelaram como perfis falsos e interações automatizadas foram usados para influenciar eleições. Em cenários como as eleições presidenciais brasileiras de 2018, a propagação de fake news atingiu patamares alarmantes, com milhares de conteúdos fabricados por segundo através de redes de bots e grupos coordenados. Ali, ficou claro que a manipulação digital podia alterar a própria percepção coletiva da realidade.
Será que muito do que vemos é apenas o que nos querem mostrar?
E, talvez mais importante: quando foi que paramos de perceber?
O fato é que a erosão da autenticidade foi gradual, quase imperceptível. Como a famosa analogia do sapo na panela, fomos aquecidos lentamente em um caldeirão de conteúdo fabricado, sem perceber que a água fervia. Quando notamos, talvez já fosse tarde demais.
A Ascensão dos Bots: Dominando Conversas, Moldando Realidades
Não são apenas contas falsas em redes sociais. A inteligência artificial avançou a ponto de criar artigos, músicas, pinturas e até interações em tempo real com usuários desavisados. Ferramentas de IA produzem resenhas, comentários e até perfis inteiros para sites e plataformas.
Em um ambiente onde o conteúdo é gerado por robôs, surge a dúvida: quantas opiniões são realmente humanas? Quantas tendências "espontâneas" foram, na verdade, cuidadosamente fabricadas por corporações, governos ou entidades obscuras?
Estudos recentes apontam que redes sociais como X (antigo Twitter), Facebook e Instagram estão saturadas de bots que replicam narrativas pré-programadas, amplificando temas e abafando vozes dissonantes. Na era da IA, controlar a narrativa é mais fácil do que nunca.
Cada "like" pode ser de uma máquina. Cada trending topic pode ser fruto de um exercício de engenharia social. Cada "debate" pode ser apenas um teatro de marionetes invisíveis.
E o que é ainda mais perturbador: essas inteligências estão ficando cada vez melhores em imitar emoções humanas. A linha entre uma opinião genuína e uma impressão sintética está se tornando indistinguível a olhos desatentos.
Diante desse cenário, cresce a necessidade de discutir seriamente a regulamentação da internet e do uso de inteligências artificiais. Sem um mínimo de controle e transparência, corremos o risco de viver em um ambiente virtual cada vez mais manipulado e desprovido de autenticidade.
A Cultura Digital Homogênea: Cópias de Cópias
O impacto cultural é devastador. Onde antes havia uma explosão de expressões individuais, vemos agora uma cultura pasteurizada, repetitiva, artificial. Músicas, memes, tendências de moda, opiniões políticas — tudo parece seguir padrões previsíveis, como se surgissem de uma mesma matriz.
Plataformas como TikTok e Instagram incentivam formatos que favorecem a repetição: trends, challenges, filtros. As diferenças culturais se diluem em uma massa homogênea de conteúdo manufaturado.
As inteligências artificiais, treinadas em gigantescos bancos de dados humanos, não criam: apenas remixam. Elas destilam o que foi feito antes, retiram a imperfeição humana e nos devolvem algo tecnicamente perfeito — e terrivelmente vazio.
A morte da autenticidade é também a morte da singularidade.
Quando tudo é feito para agradar algoritmos, a cultura deixa de ser uma expressão da alma humana para se tornar um produto otimizado para consumo rápido. Perdemos a coragem de errar, de experimentar, de criar algo verdadeiramente novo.
Riscos e Consequências: O Futuro das Interações Humanas
Se a maior parte das interações online é falsa, qual é o impacto disso em nossa percepção de realidade? Se somos constantemente bombardeados por opiniões fabricadas, nós ainda somos livres para pensar?
A exposição contínua a interações artificiais pode embotar nossa empatia. Podemos nos tornar mais cínicos, menos propensos a confiar, mais isolados emocionalmente. Em um mundo onde é impossível distinguir o real do fabricado, a própria noção de "comunidade" perde o sentido.
A cultura, que deveria ser um espelho da experiência humana, corre o risco de se tornar apenas uma sombra gerada por códigos.
As pessoas que ainda criam de forma autêntica — escrevem, desenham, compõem — enfrentam um desafio hercúleo: sobreviver em meio a um mar de conteúdo sintético, em que a mediocridade algoritmica dita o que é "popular".
A verdadeira resistência será reconhecer os sinais da desumanização digital e buscar formas alternativas de conexão: comunidades pequenas, conteúdo artesanal, criações que valorizem a falha, o erro, a singularidade que as máquinas jamais serão capazes de reproduzir.
Conclusão: Ecos de um Mundo que Já se Foi
Talvez não tenhamos presenciado um colapso apocalíptico da internet, mas sim algo mais sutil e perturbador: uma transformação gradual em uma rede dominada por autômatos, onde o humano é exceção e não regra.
A grande pergunta que fica é: estamos prontos para navegar nesse novo mundo, onde a autenticidade é um ato de resistência? Ou seremos apenas mais uma voz perdida no cemitério digital?
A internet que conhecemos pode já ter morrido. O que resta agora é um eco... e o eco, sabemos, é apenas a ilusão de uma voz.
Diante disso, refletir sobre a necessidade urgente de regulamentação da internet e do uso de inteligências artificiais não é apenas sensato — é essencial para preservar o que ainda resta de humano em nossas interações e em nossa cultura. Sem ação, corremos o risco de sermos apenas espectadores passivos de nossa própria extinção digital.