Vivemos a Era Cyberpunk. E não tem nada de estiloso nisso

Por Esdras Júnior (@eje.producer)
Quando ouvimos a palavra cyberpunk, é quase automático pensar em metrópoles sufocadas por luzes artificiais, outdoors holográficos, bandidos com implantes cibernéticos e uma chuva ácida caindo sobre as ruas de um futuro distorcido. É uma estética fascinante — tanto que virou moda, tema de games, filmes, clipes e até campanhas de marketing.
Mas o cyberpunk nunca foi sobre estilo. O verdadeiro cerne desse universo sombrio está em algo muito mais real: o contraste entre avanço tecnológico acelerado e degradação social profunda. E se você parar pra olhar em volta, vai perceber que esse futuro já chegou. E ele não tem nada de glamouroso.
Tecnologia de ponta, relações de plástico
Hoje, qualquer adolescente tem um dispositivo no bolso mais potente do que os computadores que levaram o homem à Lua. Inteligência artificial cria imagens, vozes, textos — e até sentimentos simulados. Em questão de segundos, conseguimos pedir comida, marcar uma consulta, encontrar alguém para sair, ouvir qualquer música ou assistir a qualquer filme já produzido na história da humanidade.
Mas ao mesmo tempo, vivemos uma epidemia de solidão, ansiedade, burnout e despersonalização. A tecnologia não nos conectou de verdade — ela empacotou nossas relações em filtros, métricas e interfaces. As conversas são rápidas, superficiais, cronometradas por notificações. Os vínculos são frágeis como stories de 24 horas. E o que era pra ser ferramenta virou prisão.
Vivemos um paradoxo cruel: nunca estivemos tão conectados e tão emocionalmente distantes ao mesmo tempo. O toque foi substituído por emojis. O olhar, por selfies. A escuta, por áudios acelerados. A vida virou feed. E o afeto virou conteúdo.
O império do algoritmo e a servidão invisível
Se nas distopias clássicas o controle era feito por governos totalitários, hoje ele é exercido por plataformas que ninguém elegeu — mas que decidem o que você vê, o que você consome, o que você acredita.
O algoritmo conhece seus medos, suas fantasias, sua rotina, suas vulnerabilidades. Ele te guia com uma eficiência cirúrgica — e silenciosa. Você não precisa ser vigiado por câmeras nos postes se carrega uma no bolso. Não é mais preciso um Big Brother quando você se expõe por vontade própria.
E essa vigilância tem um custo. Os dados que você entrega são convertidos em lucro por empresas que lucram bilhões, enquanto você luta por engajamento. Enquanto isso, a mesma tecnologia que poderia libertar, automatizar e facilitar a vida de milhões está sendo usada para precarizar o trabalho, destruir o emprego formal e alimentar um sistema que transforma pessoas em avatares lucrativos.
Desigualdade digital, exclusão real
A digitalização criou um novo tipo de abismo social. Quem tem acesso, conhecimento técnico e tempo para lidar com esse mundo hiperconectado avança. Quem não tem, fica à margem — ainda mais invisível do que antes.
É o novo analfabetismo: não saber programar, não saber navegar nos fluxos digitais, não entender as lógicas ocultas das plataformas. A inclusão digital que tanto se fala é ilusória se não vier acompanhada de acesso à informação crítica, à autonomia, à compreensão do jogo.
Enquanto isso, as cidades se tornam cada vez mais inteligentes, mas as pessoas continuam sendo descartáveis. A pobreza foi digitalizada, monitorada, mapeada... mas não resolvida. A tecnologia, que poderia ser ponte, vira muro.
Burnout, dopamina e performance: o colapso humano
Há algo profundamente desumano no modo como a lógica tecnológica foi incorporada à nossa subjetividade. Vivemos performando. Sempre ativos, produtivos, criativos, engajados. Sempre em comparação, em exposição, em alerta.
As redes sociais não são redes de afeto — são arenas. E nelas, a imagem vale mais do que a experiência, o conteúdo mais do que a vivência, o número mais do que o sentimento. Não somos mais usuários: somos o produto, o dado, o alvo.
A mente humana, feita pra lidar com conexões orgânicas, não foi construída pra essa enxurrada de estímulos, cobranças e recompensas instantâneas. O resultado? Gerações inteiras com distúrbios de atenção, depressão crônica, exaustão emocional. Um planeta mental em colapso.
O novo punk é sobreviver com alma
Num cenário desses, talvez o mais punk que se possa fazer seja ser de verdade. Criar laços fora das redes. Cuidar uns dos outros. Recusar a lógica do excesso, da pressa, da superficialidade. Respirar. Reaprender a ouvir, a tocar, a errar. A sentir.
O punk original era um grito de resistência ao sistema, à conformidade, à apatia. O cyberpunk, quando surgiu, projetava um futuro onde esse grito seria sufocado por chips e megacorporações. Mas mesmo nesse mundo plastificado, ainda dá pra resistir.
E resistir, hoje, é desacelerar. É cultivar o que não se pode monetizar. É reivindicar o direito de ser humano num mundo que quer te transformar em máquina.
Conclusão: o glitch da realidade
Sim, estamos vivendo a era cyberpunk. Mas ela não tem trilha de sintetizador nem carros voadores. Ela tem entregadores exaustos, influencers quebrados, estudantes endividados, idosos esquecidos por apps de banco, crianças dopadas com telas.
O neon é só estética. A distopia é estrutural.
E se você se sente deslocado, angustiado, cansado — talvez não seja você o problema. Talvez seja o sistema. Talvez seja só o glitch da realidade tentando te mostrar que ainda dá tempo de acordar.